quarta-feira, 27 de novembro de 2013

olhos assim 
tão juntos
entortam o corpo
ossos no rastro 
do movimento
estalando as horas

o peso 
por cima do gesto 
como se a lembrança
já fosse outra 

possuídos 
sem a pressa da certeza


Fernanda Tatagiba 
Morte

Nem temor nem esperança assistem
Ao animal agonizante;
O homem que seu fim aguarda
Tudo teme e espera;
Muitas vezes morreu,
Muitas vezes de novo se ergueu.
Um grande homem em sua altivez
Ao enfrentar assassinos
Com desdém julga
A falta de alento;
Ele conhece a morte até ao fundo —
O homem criou a morte.



W.B. Yeats: "Death" / "Morte": trad. José Agostinho Baptista

sábado, 23 de novembro de 2013

Na solidão inconfessa do amor 
de vez em quando alguma coisa incomoda
vem até a tona para respirar, 
e nos contemplar, muda, encabulada
com a língua imunda de fora, a afar 
não que soubesse que no fundo 
da doce felicidade possível
sobreviveria alguma criativa 
fria e estúpida como essa, esperando
sem pressa um momento insatisfeito
de insônia para atacar; mas vê-la
assim a implorar dá pena, e medo,
e nojo. E o jeito é afagá-la um pouco
até que ela mergulhe outra vez



Paulo Henrique Brito 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Há pessoas que eu amo 
e a elas reservo meus melhores pensamentos
minhas vitórias silenciosas numa mesa de bilhar
as músicas dilacerantes que ouço sozinho deitado no chão da minha sala
o café da manhã que faço e bebo sozinho imaginando diálogos de uma peça que ainda vou escrever
minhas caminhadas sem rumo pelo centro da cidade
meu despertar tentando divisar algo no escuro do quarto
apenas a luz vermelha da tv que esqueci ligada
minhas fugas diárias
meu exílio voluntário
minhas distrações oportunas
o sorriso que aparece atrevido no meio do rosto quando nem acreditava mais que ainda podia contar com ele
a vontade de sair dançando pela sala sempre que ouço when the music stops
o intervalo que sucede o próximo fracasso
então eu simplesmente entro no ringue de cabeça baixa e com a certeza que o protetor está no lugar
vou cuspir algo mais que dentes nessa noite sem encrenca
há pessoas que eu amo por aí
mas elas nem precisam saber disso



Mário Bortolotto 


Desenho em Giz de Cera: Fernanda Tatagiba

terça-feira, 19 de novembro de 2013

é quando eu vejo 
nascer nariz
e orelha 
nos objetos 
e o cabelo
da sombra
das folhas
vai virando
todas as outras 
pessoas 
que parecem 
com você 


Fernanda Tatagiba


Teogonia

O que vejo em teu corpo descoberto
é mais ou menos o que sei do meu:
aquela maciez enganadora
das frutas doces de caroço duro 
de tudo o mais. Mas sei (ou adivinho)
que atrás da pele, além das samambaias
grosseiras do visível, alí se arvora
o travo opaco do real, amêndoa
seca do ser. Comer seria fácil
(ainda que amargo) não fosse esse verniz
viscoso que embaça minha vista,
que te reveste o corpo feito carne
e que transforma as coisas num desejo
único de morder.  Daí os deuses

Paulo Henrique Brito 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Situação

to dormindo no lodo
da vala confortável onde dormem
os apaixonados

e lambendo sabão de cachorro
sorrindo, e sentindo cheiro de maçã
onde não tem

chamando os amigos pra almoçar
e deixando a comida esfriar
pra falar de você.



Bruna Beber

domingo, 17 de novembro de 2013



Fernanda Tatagiba

literatura-rua, literatura-povo, cinema capixaba e explosão em Fernando Tatagiba

Texto de Sarah Vervloet sobre o escritor Fernando Tatagiba 


Há 25 anos, Fernando Valporto Tatagiba se despedia da nossa Ilha. Natural de São José do Calçado, jornalista, escritor, poeta e, principalmente, observador atento e de olhar sempre crítico, deixou um legado que abrange contos, crônicas, poemas e estudos documentados sobre cinema. Como jornalista, era inflamado por seus ideais e assumia argumentos, na maioria das vezes, muito afiados. No papel de escritor, mantém-se sagaz e sutil, mas acrescenta um caráter inventivo inédito para a literatura feita no Espírito Santo até os anos 1970. Na verdade, parece impossível estabelecer essa divisão: Fernando Tatagiba era um jornalista-escritor e um escritor-jornalista, pois era capaz de levar para os jornais e revistas a sua personalidade poética e engenhosidade literária; mas também transformava a notícia jornalística em ficção, metamorfoseando os indivíduos das páginas policiais em autênticos personagens kafkianos.






Sarah Vervloet
o restante do texto (link)




Quando todos
se
deitam
e o silêncio
sobres-
salta
e já
não há
um ruído nas ruas
nem nos corações
de cada quarto
nem se-
quer a voz veloz
do relógio que há
dias parou
nem a certeza
na escolha mais
des-
importante
só sei
que sou
pois con-
sumo.


Charles Marlon 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013



Com simplicidade, usando objetos comuns do seu uso diário e com ajuda apenas dos amigos para realizar suas montagens, Alexandre Mury faz paródia de obras de arte e figuras consagradas. 

Porém, paródia talvez não seria a melhor palavra, ou pelo menos ele dá uma nova possibilidade a ideia de imitação cômica. 


Esse termo, traz uma noção de  algo intermediário, um meio para levar a uma mensagem intencional, podendo restringir o potencial artístico. Assim como seu oposto, isso é, quando a paródia, utilizando da comicidade com o objetivo apenas da risada. Neste caso a graça não costuma durar mais que o impacto inicial, já que a identificação do objeto da paródia, depois de ser deslocado de seu lugar, costuma voltar sua ordem de representação. 


No caso de Alexandre seu trunfo é que o parodiado é ele próprio. Munido de muita criatividade, esta salvo de vira caricatura, pois antes que isso aconteça ele se transformou numa imagem conhecida ou já esta em outra fotografia.  


Na dramaturgia buscamos o personagem por trás do rosto do ator, na arte de Mury fazemos o caminho oposto. Queremos mergulhar ou mesmo retirar sua caracterização. A espera é que é o fim. Alexandre vestido para foto (ou nú, no caso da releitura do quadro Abaporu) aguarda ser visto. Mas o grande momento de sua arte é quando despimos cada objeto, abandonando a obra retratada, e podemos, com ele, compor com banco de plástico, macarrão e rolo de papel higiênico alguma coisa entre Shakespeare e Frida. 


Mass existe um elemento comum em todas as fotografias.
Os artistas não aceitam serem copiados, e essa (im)possibilidade é o que os movem. 


Alexandre não vai longe de sua piscina, bandeja e molho para macarrão, pois é ele quem esta ali. Narcísico, não foge de sua condição, por isso pode ser tantos. 


fotografia: Alexandre Mury
Texto: Fernanda Tatagiba

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

se olhássemos mais para o céu que para chão 
cairíamos menos



Fernanda Tatagiba
pode ser que adiemos esse nosso amor
com um beijo a menos
um dia atrás 

pode ser que não iremos a Paquetá 

pode ser que com muito menos
não adiantaria



Fernanda Tatagiba
Como distinguir aquilo que foi útil, aquilo que surgiu por acaso? E por que não os filmes? E as conversas? E as velhas leituras, as da infância, que me fazem ainda sonhar? Uma bibliografia verídica, sincera e exaustiva é tão impossível quanto uma confissão verdadeira. 


Antoine Compagnon - O Trabalho da Citação 
rasgar um poema
queimar

(bolinha de papel pulando
sobre a mesa)

picotado 
pela janela 

palavras em desespero 

ninguém sabe o trabalho que dá 
um esquecimento



Fernanda Tatagiba

Waly Salomão

domingo, 10 de novembro de 2013

Duas filhas de Amon-Rá

Ela escreve palavras à força no meu corpo usando esferográfica azul. É um fetiche. No início me incomodava, agora já me acostumei até mesmo com o cheiro horrível de tinta. Às vezes peço que faça desenhos pornográficos. Ela ri, desenha algo tolo e se cansa da própria cena que criou. Propõe inversão e eu detesto. Talvez eu seja uma literata de lata passiva. "Vira-lata", me acusa. E eu não me importo. "Vira-lata do amor", admito. "Mas você também é". Vive dizendo a todos que o meu texto é abusado, "graças a Amon-Rá" já que eu teria um jeito de intelectual conservadora que só Deus. Canta Janis Joplin no chuveiro. Dança funk. Quer me ensinar sobre o I-Ching, física nuclear e signos. É uma mulher de Touro. Não combina comigo e eu não me importo. Não é fiel. Mas eu não me importo. Acha que matar mosquitos com raquete elétrica é crime hediondo. Tem a voz linda e mata baratas aos gritos. Ela vai à praia quando sente raiva ou tristeza porque pensa que o mar é maior que qualquer fúria ou dor. Toma Prozac quando dá na telha. Consegue fazer as mais belas encenações de amor quando está com TPM. Não sente cólicas. Não sente o frio. Não sente calor. Não sente nada. E eu não me importo. Ela diz que precisa da esferográfica azul. Em mim. Precisa do ritual. Ela é louca. Outro dia tentou começar um texto nada disfarçadamente na minha perna durante um chorinho no Bip Bip. Mas ela tem a voz linda e é capaz de me convencer a fazer as maiores maluquices. Sempre me chama de intelectual vira-lata e careta quando quer me controlar, eu deixo pra lá. Porque ela tem a voz linda. O único problema é que ela fica perigosamente perto da janela quando briga comigo. E eu não me importo.


Viviane de Sales

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

cabelos encharcados de vento 
acompanhando os passos 
suspirando no ombro 
levados como embrulho 
para o cheiro 
que vem



Fernanda Tatagiba

quarta-feira, 6 de novembro de 2013



O zero não está no sistema. 
Deparar-se com o zero significa
romper com a continuidade de um ciclo,
pondo a sombra em evidência,
o irreal como existente, 
significa transformar uma realidade.


Cildo Meireles e Nicolle crys (link) 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

ninguém dorme nesse prédio
todos sabem e só levantam 
quando já desistiram 


mesmo de noite
com pouca luz
olhos fechados

todos acordados
desde manhã

até os sonhos não garantem
dormir é 
só para quem acredita



Fernanda Tatagiba

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O Estalo do instante - um beijo por um abraço





Um desenho esculpido em um pedaço de pedra que mesmo tendo um traço que parece dividir o bloco longitudinalmente ao meio, mantêm sua unidade. A ideia de união é reforçada pelos dois braços que abraçam a escultura, dividindo a peça no sentido oposto. Aparece para o observador da imagem metade de cada boca se beijando, e de cada olho, deixando a impressão que eles eles estão unidos como se fosse um. Ou, alguém, por não ter o "outro" esta dividido, mesmo sendo um bloco, não há unidade. Remete nesse ponto a condição humana de seres desejantes, impulsionado pela falta, uma incessante busca algo integrador. O obra mantem parte de sua estrutura original, nos lembrando que a obra é uma pedra, um bloco concreto, passando uma sensação de estarmos observando algo estático, fixo. Há uma intenção de uma estética primitiva, com poucos acabamentos ou artificialismos. Como se víssemos, apesar da impossibilidade de um ser conter dois e um, uma busca por captar o real, chegar ao ponto da mistura do impossível, em que está integro e ao mesmo tempo integre, um instante tão fugaz que só poderia virar pedra, arte. Um detalhe interessante é que a boca é a menor parte do objeto, ficando o braço em maior evidência, dando uma sensação de estranheza, como também lembrando que a boca é apenas uma das partes do beijo. Porém, se a boca é pequena, os dois braços unidos ficam em evidencia, e remeta aos lábios, os braços se transformam em uma boca, voltando a ser, mesmo sendo braços de duas pessoas, um elemento só, unificando o objeto. Outro ponto é que não há como identificar o gênero das figuras, o que transmite a ideia que se trata de um beijo fraternal, um outro supostamente universal. Assim, mesmo sendo um bloco que pende mais para o quadrado, que sua coloração não foge do aspecto concreto do material, é uma escultura que contém movimento. Sua ação se dá pela transição sígnica  ambiguidade que movimento nossos olhos. 

escultura: Brancusi; textro: Fernanda Tatagiba 
Sabemos que o filme e mais ainda a novela de televisão não equivalem ao
romance; que a fotografia não tem o mesmo prestígio ou valor social (nem o
mesmo valor mercadológico) que a pintura; que um recital de Beethoven é ainda considerado muito mais “cultural” do que uma roda de samba ou um show de rock. Mas existem hierarquizações mais sutis (e mais perversas) que atuam sobre nós com grande eficácia: não cogitamos, por exemplo, que um leitor de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, corra o risco de se tornar racista, mas nos preocupamos séria e honestamente com o poder alienante que a televisão pode ter sobre o seu público. Isto sinaliza que, além da hierarquia das linguagens ou das formas de expressão culturais, introjetamos também uma hierarquização dos diferentes públicos ou esferas de recepção.


Eneida Leal Cunha no artigo A emergência da cultura e da crítica cultural. In: Cadernos de estudos
culturais
(...) como o poeta fingidor o poeta jogador também se empenha tão completamente no seu processo de criação, na artificialização de seu objeto artístico,  na elaboração de seu poema, que as vezes não se satisfaz em jogar com a linguagem com o seu instrumental de palavras, chegando arriscar numa parada suprema o jogo de sua própria subjetividade 



Affonso Ávila - O Lúdico e as Projeção do Mundo Barroco 

sábado, 2 de novembro de 2013

o sol pousa no seu umbigo 

como explicar?
dizer sem metáforas 
as coisas que vejo

o fim da tarde

nas suas pernas  
rosa como a água do mar

vem a noite
não há como evitar 
que as palavras virem outas coisas


Fernanda Tatagiba